terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Um verso

Eu queria ouvir um verso que falasse de amor,
da vida que existe "fora" do mundo, distante, a parecer irreal,
e onde todo o universo material fosse dissolvido frente aos meus olhos,
cansados da imagem exata de um dia qualquer.
Como se esse verso fosse composto pelos meus passos,
pelo sol nascendo numa manhã em que eu acordasse bem disposto,
pelo silêncio, pelas crianças levadas da casa vizinha,
ou mesmo, pela lágrima que me cai dos olhos nos momentos
em que me sinto sozinho - quase sempre – pois que não estou em lugar algum.
Eu queria ouvir um verso...

A solidão tem colo de mãe,
mas não afaga a cabeça da gente na hora de fazer dormir,
não conta histórias de heróis e nem nos veste o corpo com o cobertor, por causa do frio.
Seu cuidado é o de nos fazer descuidar do tempo,
entregues às bebidas e cigarros,
e enganos quanto a verdadeira vida,
vigente e persistente em nos resgatar do círculo vicioso de acertos,
erros e arrependimentos.

Mas o que existe mesmo é uma energia envolvendo tudo o que há,
em todos os momentos, na saúde e na doença.
E um verso de amor talvez não esteja apenas na palavra-verbo, escrito.
Basta que se encontre o que é belo na chuva, no vento, num filme, no espelho do banheiro, nas pessoas, na escada, no erro, na dor, na roupa de cada dia,
no alimento de cada corpo, na vida...
O verso vai está lá esperando para se inscrever em nossos sentidos.

Carta Para um Grande Amigo

                    Aqui, um tanto pela admiração que tenho pelos sentimentos do meu amigo - o jovem Richard Wander; como também, por acreditar que era um desejo seu que os dividisse com todos aqueles amantes ao qual, ou em função dos desnorteantes caminhos da vida, ou por serem donos de alguma mácula que não fora desculpado, sofrem dos males causados pelo amor; exponho esta carta que talvez tenha sido seu último suspiro.
                     No entanto, peço-lhes respeito com o caráter desse desditoso, pois sou conhecedor de sua ternura, que apesar de ter-se deixado a duvidar quando este se mostrava totalmente arrogante no comportamento cotidiano, ainda assim, não a deixou sequer subtrair nessas entrelinhas, onde eu acredito que se mostra sentimental como era no íntimo. E vós, ó leitores sensíveis, que também não encontrou êxito no amor, desejo que amenizes tuas chagas com os sentimentos desse infeliz; ao menos isso.
                                   

                                                                                                Fernando Rosa


                    07 de junho – Fernando, caro amigo, desde que aqui cheguei, em casa de minha tia, a quem devo muita estima, procuro resgatar um sentimento de família que, até então, já não me era cogitado. Agrada-me, principalmente, a alegria das crianças. São mesmo os melhores psicólogos. Tens que ver o diálogo que há entre eu e minha prima de três anos, Ana. Ela parece uma pessoa adulta falando, enfatiza cada palavra, gesticula; assim, fico apenas escutando e, se falo, é no intuito de arrancar-lhe mais informação. O tanto mais que tenho feito, é observar tudo em redor, fazendo análises as quais coloco em paralelo com minha vida, dedicando-me ao árduo exercício do auto-conhecimento mediante mundo que me cerca.
                    Apego-me, amigo, ao exemplo que me destes quando dizias, em simulação, que o bater das asas de uma borboleta pode provocar uma brisa a refrescar. Por isso, estou descobrindo e organizando significados em tudo o que me é palpável, e o que me toca sensitivamente. Quero aprender a valorizar o que tenho, quer pelo seu destacamento, quer pela sua simplicidade; pois tudo o que é da vida e, simultaneamente, necessário à sobrevivência humana têm significações, e somos nós que damos, conscientemente ou não.
                    Mas pense em nossa gente, dissimulada, tornando cada vez mais práticos os sentimentos, envolvendo-os em cálculos, significando-os na aritmética de soma e multiplicação (falo do sentimento material, da propriedade), opondo-se a aritmética da divisão? Eis, por exemplo, que estão fazendo do desejo de se ter poder algo mais significativo que o próprio homem, desencadeando o total niilismo da sociedade – isso é preocupante. No entanto, encontro outro valor na aritmética, além da divisão, de cunho comunal, – pois é nesse âmbito que defendo a significação – tal qual é responsável por mostrar o quanto nos subtraímos subtraindo nossos semelhantes. Talvez se diga que é inútil tratarmos desses assuntos que não se faz dependente de nós a resolução, meu amigo. Mas esses são os conselhos daqueles que nos querem dispersos, alienados, acomodados.
                     De quando em quando, assim que é chegada a noite, visito o jardim da cidade – Jardim do Éden! É que me afino com aquelas árvores formando corpos (como são eróticas!); e se posso te mostrar vestígio, estes estão pendurados nos galhos que se entregam ao vento como braços, lançando abraços. Pareço bobo, não é? Mas quem nunca fantasiou andando pela vida, meu amigo, não conheceu ainda os caminhos do amor. Sim, estou amando! E talvez rias de mim, vendo-me chamar o jardim de Éden. É que foi naquele pedaço mordido de mundo que me esquecia do tempo a conversar com Beatriz. Por outro lado, foi nesse mesmo ambiente que tanto nos agredimos os sentimentos sob o efeito do fruto da, digamos, "má significação" – explico-lhe no próximo parágrafo. Quanto ao "Éden", nem por isso hei de esquecê-lo. Todos os sinais devem ser guardados.
                     Prossigo - Beatriz preocupava-se demais com os preconceitos de sua família e da sociedade, tornando-os mais importantes que o sentimento existente. "É mau negócio"! – dizia Serpentina, sua mãe. Porém, meu caro, nenhum erro é pessoal; mas, coletivo. Eu e Beatriz também somos responsáveis pelo nosso término. Porém, se eu não estivesse me embrutecido, ela suportaria a pressão a qual estava sujeita. O maior responsável pelo seu afastamento fui eu. Feri-me pelo meu próprio chicote. Ciúme, Fernando! Ela já havia se entregado aos laços do matrimônio no passado. Fora sua mãe, Serpentina, quem "abençoara" o casamento – que ela não me escute a ironia. Afonso é homem de respeito, médico, logo, um bom partido, dizia. Se pudesse resgatar a juventude, acredito que dona Serpentina teria a indolente pretensão de conquistá-lo. Apostaria com você, meu amigo. Algumas mulheres são desses caprichos. Beatriz, não. Casou-se amando o marido. Ela é extremamente sensível, inteligente...não cabe nessa folha. Por tudo o quanto sofro, ainda amo-a intensamente.
                    Bom, meu caro, posso dizer a respeito de dona Serpentina que, em partes,  assemelha-se à personagem criada por Machado, Maria Augusta, mãe de Maria Benedita, no livro "Quincas Borba". É uma triste senhora, hoje, que toma as rédeas da vida de Beatriz, ou por se julgar ameaçada da solidão se a filha resolvesse casar-se, ou porque tinha preconceito com nossa relação; e, assim, fazia tudo o que podia para evitar o "desastre". Mas Beatriz já chegou aos quarenta, sabe o quer nessa vida; porém, nada questiona, é ela quem permite tal invasão. Se a velha soubesse que a filha nunca há de abandonar-lhe... Mas o medo cega-nos. Minha maior chateação, no entanto, é que esta senhora nunca me olhou diretamente nos olhos, sempre começava pelos pés. Está aí a parte que lhe faltava dizer: é burguesa; francesamente.
                    Já é madrugada, Fernando; o sereno cose os meus ossos. Amanhã continuo.   

                    08 de junho – "Triste é o amanhecer: nasce o sou da ressurreição com um porvir funeral". Amigo, o dia apareceu-me em lágrimas. Amo Beatriz , Fernando! Ontem foi seu aniversário; e por não estar ao seu lado, doeu-me a alma. Saiu para festejar com a família e amigos num restaurante. Estava linda, como sempre. Ainda tenho guardado na memória o vermelho que lhe vestia, e foi inevitável a lembrança do Natal que passamos juntos. Usava vermelho também (paixão). Dona Serpentina ocupava o acento de fronte a praça. Ao seu lado esquerdo, um amigo de Beatriz que muito me agrada. Este vive a sombra do seu ideal de liberdade, sem se preocupar com maledicências – assim como tu. Do outro, sua filha – esta me expulsava com o olhar, queria ver-me longe dos olhos de sua mãe.
                    Sentei-me longe. Num banco de praça que ficava de fronte o local da comemoração. Distrai-me com os olhos para onde estava Beatriz. Ah! Por que duas pessoas que se amam, afastam-se para serem felizes? Será mesmo matando que se permanece vivo? Não acredito nisso, Fernando. Estou sofrendo, agora. Mas sou culpado. Ainda no dia 06, cujo momento estava a escutar Soneto de Separação, interpretado por Vinícius e Elis, jurei que não sairia de casa para evitar qualquer constrangimento dessa força. Mas fui impelido por um desejo irresistível que sequer posso explicar. Queria vê-la ao longe, só isso. Será pecado, meu amigo, ir ao encontro de quem se ama? Penso que mais errantes são aquelas pessoas que fogem ao amor por medo de sofrerem. Insensatos!
                   Depois, Beatriz levantou-se, fora embora com sua família, despediu-se dos amigos antes. Virou-se de costas e não mais olhou para trás. Se olhasse, eu estava escorado num poste, acompanhando-lhe os passos, com os olhos em lágrimas. Algumas pessoas que ali se encontravam, usaram de um sorriso prosaico diante de minha tristeza. Tenho que aprender a chorar para dentro, Fernando. A insensibilidade em nosso meio é tamanha, que pessoas (medíocres) tratam com escárnio os sentimentos alheios. Não posso mais dar a face para que as línguas da cidade cheguem ao gozo, sadicamente. Ninguém se preocupa em ajudar, somente em escarnar.
                   Não obstante, ainda que não tenha tua confirmação, acredito que esses problemas sociais são provenientes da política partidária, e do capitalismo. O que se percebe é a mercantilização de todas as dimensões da vida. Por isso, meu caro, é preciso que as pessoas analisem os significados que dão as "coisas", ou serão estas "coisas" que lhes darão qualquer significado... de posse. Agradeço, muito, a chegada do dia 20 de Maio: fim das eleições -  viva! Poxa, a festa ornamentada com camisas e bandeiras e papéis de divulgação foi mero esconderijo da subversão do povo contra o próprio povo, que se dividiu entre lados (como sempre) em função dos interesses individuais, a divergir do progresso comunal. Este é o espírito partidário!, que, ao iniciar-se com as oposições, reflete-se em toda a sociedade; desde o ódio nos olhos ao lume das facas – foi a política mais baixo nível dos últimos anos, Fernando. As Epsilon Crucis apropriaram-se dos valores e das atenções com acenos e sorrisos. Quem ganhou!? Todos perderam... "A propriedade é um roubo"; dizia Proudhon, anarquista. Pense nisso, amigo.         
                    Fico feliz por saber que Beatriz não defende partidos. Dona Serpentina é diferente. Aproveitou os desentendimentos meus com sua filha para nos afastar. Preconceito! Infelizmente, não posso acreditar que foi por outro motivo. Veja. Beatriz trabalha como instrutora de Belas Artes. Foi em um desses cursos que lhe conheci. Era seu aluno. Desde o início, começamos a perceber coisas um no outro. Mas, como sabes, não passo dos vinte. Começamos a namorar. Visitei sua casa. Serpentina, acreditando que eu tinha uns 25 anos, ficara assustada. Fui embora. Mais tarde, encontrei-me com Beatriz. Ela disse que sua mãe perguntou minha idade: 17 anos. E foi Beatriz mesmo quem me falou que Serpentina quase caiu para trás. Preconceito, Fernando!
                  
 Fui conversar com a velha:
                    - Não concordo com esse relacionamento.
                    E mais bravamente.
                    - Beatriz só pode ter perdido o juízo!
                    - Mas que erro há em gostar de alguém?
                    - Você é um menino. O que tens para oferecer a ela?
                    - Meu amor.
                    - Amor não é suficiente. Sonhei em ver minha filha casada com um homem de respeito. Alguém que tem uma vida instável: trabalho, influências...
                  
                    Não tive mais como argumentar, diante de tantos disparates. Senti-me tão pequeno quanto um grão de areia no mar, mesmo sabendo que aquilo tudo provinha de alguém que não merece meu respeito. "Por que as pessoas valorizam os serem a partir da superficialidade a que chamam de integridade?" Fiquei pensando, pensando... Nada a fazer para mudar alguém que já estabeleceu uma linha de raciocínio, principalmente quando se trata de valores materialistas. Só o tempo para curar essa doença.
                    Fernando, meu caro, acaso sabes por que nossa sociedade insiste em criar relações entre amor e política? São coisas que devem ser tratadas separadamente, penso eu cá. Se amor tivesse que ter primeiro dote, data de validade, número de compra, controle das idades; e nisso, também, está incluso o sexo (opostos), religião, naturalidade... ?Nessas condições, amor só não teria AMOR. "O preconceito inibe a evolução", disse algum pensador que me falha o nome agora. Mas existe uma verdade. Afonso é médico; sou mero estudante. Isso me dói à alma. Há, no entanto, quem diga que ele traiu Beatriz quando eram casados. (Lógico!, deves estar a dizer. Não seria traição se estivessem separados.) Porém, no tempo que estivemos juntos, um ano, fui fiel. Acredite. Brigávamos! Mas essas coisas acontecem em todo e qualquer relacionamento; e, no diálogo, pode-se resolver. Uma coisa é certa, meu caro: o erro é coletivo. Ação e reação. Mas deveríamos usar de reação com inteligência; ou melhor, ação. Parar com esse jogo de acusações. Deveríamos brincar com os pratos da balança, malabaristicamente; pois pesam-se, nela, os velhos e sujos trinta dinheiros. "Vós sois deuses" - foi lançado o desafio. 
                    Esta carta parece um livro, mas amanhã termino.

                09 de junho – Acordei esta manhã com um único pensamento: a virtude está no meio. Preciso acreditar nisso, Fernando. Estou fraco, derrotado. Parece que longe de Beatriz não há virtude. O amor é a maior virtude! Não posso faltar com este ar que respiro. Mas as pessoas sempre escolhem por esquecer; é mais curto este caminho. Esquecer! Caminho repleto de flores murchas! E era Beatriz mesma quem me dizia, rapaz: "Viver o amor, fazer crescer". Agora tudo mudou. Portanto, preciso te dizer, vou embora. Perderei a única mulher que me levou ao prado do amor para respirar do seu perfume. Vou embora, Fernando! E não hei de voltar. Acabou, amigo. Sentirei muitas saudades daqui. Família! Acostumei-me a viver em família...
                    Estou sofrendo. Choro pelos cantos, escondido, para não preocupar ninguém. Todos sabem das minhas loucuras, e podem pensar que voltarei a fazê-las. Meus braços; tenho vergonha deles. Sabes o porquê, não sabes? Quero entregar-me ao Deus dará. Acaso existe, amigo? O sol apareceu na janela esta manhã; não posso me esquecer desse fato. - Adeus, Beatriz!; receberás uma última prova do meu amor. Devo, Fernando? Vê se te agrada:
   

                                                           História de uma Flor


No auto de uma montanha,
longe dos hirtos eclipses que Diana lume,
próximo a um novo céu prateado de estrelas,
uma flor nasceu; a fincar suas raízes na terra
para reanimar (com seu perfume) o vento
que, denso e frio, caía dobre duas almas;
duas almas sensíveis a caminhar no tempo
com um cruzeiro nas costas marcadas de guerra.

Viera, ela, trazendo o amor em suas pétalas;
mas, com um mal-me-quer bem-me-quer duvidoso,
onde só os dois amantes podiam decidir qual delas
- a pétala -tornar-se-ia eterna,
com um porvir alegre ou desditoso.
Eles fizeram do infinito, um risco - um para o outro.
Sim! Fizeram mesmo do infinito, tenebroso.

Enquanto, de nascente,
a vida queria ser materna,
abriram uma cratera na terra;
fizeram do amor, poente.
E, de tão exigentes, na guerra,
deixaram-se perder na quimera
com o perfume da flor - para sempre.

Espero que gostes, Fernando. Afinal, veio do coração.
Utilize os meus conselhos; por mim. Em minha vida, essas palavras perdem-se com o sentido à fragilidade. Vou embora! Adeus, amigo. Beatriz! Como sinto saudades, meu Deus. Adeus, Fernando. (Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos...)
                    Ah! É responsabilidade tua, Fernando, o sigilo dessa carta; tudo o que nela falo fica entre nós, restrito.
                               
                                                                         Adeus, amigo.


Richard Wander 

Cai o pano.

 (Inspirado no livro "Os sofrimentos de Werther")

Do espírito

Fujam das matas escuras
De olhos e dentes a lhes devorar.
Junto à genealogia
Os bichos selvagens vieram pra cá.
Eles que vivem na gente,
Que mandam nas mentes,
A lhes eriçar.
Que não abriram seus olhos,
Juntado tijolos para pro tempo fechar.
Mas que também não são surdos,
Que, até entre os muros, podem me escutar.


Andem com os olhos pra frente,
Que atrás não vem gente a lhes acompanhar.
Deixem seus trevos nas hortas,
Que a sorte não sabe a porta de entrar.
Não vos preocupem com o ocaso,
Que o sol do outro lado há de rebrilhar.
Tirem suas cruzes de Deus,
Que o mundo lhes deu foi para levar...

Oração à vela


Deus, Deus!
Todos rezam para Deus,
Que não revelou a face,
Onde que ele se escondeu.

Vejo... Os dias vão passando,
Com a velocidade de um Deus ateu,
Chega a me dar saudade
Da simplicidade que já se perdeu.

Deus, Deus!
Todos rezam para Deus,
Que não revelou a face,
Onde que ele se escondeu.

Na labuta, dia a dia,
Sol a sol, onde é que vai parar
Tanto desperdício em massa
Corre o tempo, tudo tende a evaporar.

Deus, Deus!
Todos rezam para Deus,
Que não revelou a face,
Onde que ele se escondeu.

Tanta gente pelas ruas
Sem morada para se abrigar
Que não tem na vida outra saída
A melhor saída é se arriscar.

Deus, Deus!
Todos rezam para Deus,
Que não revelou a face,
Onde que ele se escondeu.

Morte e vida, Severina,
A criança nasce um filho teu
Só que se torna bastarda
Da realidade que lhe acolheu.

Deus, Deus!
Todos rezam para Deus,
Quero em mim a Tua face,
Meu disfarce de Morfeu.

Fantasia à sombra da noite

Dorme na fria calmaria de minha alma,
como uma criança sem graça,
medrosa, bastarda.
Eu passo minha luz sobre teu corpo
e te esfrio contra o calor das ruas.

Quem sabe eu vele teu sono,
tocando no violão alguma canção
que envolva os teus pensamentos sonâmbulos
e te faça flutuar para o mundo dos mortos.

Dorme, criança triste.
Dorme sem fazer barulho maior que minha música.
Eu não vou te abandonar até amanhã,
também não vou te contar histórias de Peter Pan.

Quero despertar tua maldade,
jogar-te contra esse mundo que te faz sofrer,
para tirar um pouco do teu sangue fervente
e ofertá-lo ao anjo das sombras,
onde terei minha mais afortunada recompensa:
um lugar sagrado no inferno.

Chorei demais, cantei demais

Errei demais,
Mas quem não erra
Não vive na terra.

Na dor, repara o sofrer,
Fugindo de espinhos-quimeras,
Sentindo o perfume somente na tabela.

Cantei demais,
E quem me dera,
Cantar pra esquecer dessas guerras.

A lei que é a lei do poder
Reage à lei de aprender
E fica querendo barrar a nossa festa.

Chorei demais, cantei demais.
E o tanto mais quero ver se libera:
O erro pra gente aprender,
As velas pra gente acender,
E iluminar toda essa atmosfera.

Viagem

Há no silêncio
Um vazio que se condensa,
E revela em meio às rochas
Uma cascata que timidamente derrama,
Com força pungente
Para o lado de onde saiu.

Escuto a música da natureza triste,
Como se fervilhasse em minha mente
As notas densas de suas raízes.

E os meus olhos são tomados por uma surda sonolência,
Enquanto minha alma
Mergulha nas profundezas do rio.

Vejo a deusa dos ramos vestidos,
Dançando a melodia do tempo carcomido
Pelo perfume fúnebre das flores,
E pelo éter dos errantes amores dos bichos.

(Tudo são devaneios em qualquer paisagem em cor)

Pseudônimos

Perdi minha face na lua abandonada.
Vesti-me de lobisomem para andar nas montanhas,
Fugindo dos espíritos soltos a cantar.

(Fico triste pelas crianças desnudas do convento.)

Os deuses vieram para serem a cura do mundo,
E usaram de pseudônimos para destilarem veneno.

As crianças se embriagam do vinho seco,
Das águas do pântano,
Que bebe os homens de "pouca fé" a sucumbir.

Eis, EU, o homem que veio salvar-me da peste:
Tirou sua face da lua e virou lobisomem,
Carregando no pêlo dos olhos minha verdade.

Diferente da "verdade" que queima homens em fogueiras
E se perde na fumaça,
A perceber-se ainda na dor de um herege.

(Tristes são as crianças do convento...)

 Os deuses vieram me abraçar,
Mas estavam todos com os braços quebrados.

Catarina

Bem à sombra de um umbuzeiro
Fica a dama Catarina
Com suas tranças de menina,
Vestido forrando o chão.

Dobra o olhar sobre as planícies
Como se fosse a cavalo
Conhecer o outro lado,
O outro lado que é do Sol.

Mesmo assim a estar ao Sol,
Lança o anzol à terra quente,
Se lançasse pelos olhos,
Tinha bem o que pescar.

É a dama Catarina,
Corpo e alma, deflorada.
Com idade pouco andada,
Quase idade pra casar.

Dama que comandará
Cada espaço da fazenda,
A cuidar dos bens dos filhos
Para sustentar família.

Expulsar os dons de Midas,
Dissolver os vãos corais,
Tanto acender castiçais
Às mais terríveis lembranças.

Brota, aos prantos, a esperança
De um dia se ver contente,
Bem à sombra de um umbuzeiro,
Com crianças a cantar:

"Viva a vida, Catarina,
Não te deixe amedrontar
Com as torturas deste mundo,
Com os imundos do lugar".

"Vem girar (girar, girar...).
Vem girar (girar, girar...).
Não te deixe amedrontar,
Não te deixe amedrontar".

Quando no final da tarde
Foi-se embora a Catarina,
Ia passando pela venda:
- só bebida pra rapaz.

Da sombra

Eu poderia ser como um espelho mirando o céu,
e poderia ser uns milhares de cacos de vidro jogados ao chão.
Translúcido e rudimentar, eu poderia ser.
Poderia me banhar na dor da lágrima que rega a flor.
Eu seria breve como o beijo dos meus amores
e ralo como o sangue das minhas veias.
Braços cicatrizados e olhos sem retina, eu seria.
Eu seria breve em louvor ao deus que me quisesse ao seu lado.

Eu seria a vela que chora a parafina,
o seu líquido, quente e fúnebre.
E eu poderia beber o meu amor na boca de outra pessoa,
que não fosse aquela que tanto eu amara,
ignorando as bactérias do cuspe,
castigando a traição de todas as bocas,
para ser fiel ao eterno amor que só dura uma noite.

Eu poderia catar os meus vidros quebrados em miúdos,
cortando-me as mãos.
Poderia colocá-los como estrelinhas pejorativas no céu,
no inferno de todos os homens, masoquistas e ternos.
E eu seria a punição dos cegos,
os sussurros da víbora excitada com as nossas tristezas,
e que goza veneno sobre os lençóis de nossas camas.
Eu viveria séculos nessa tortura e nesse deleite de línguas.
Entregaria os meus sentimentos para a minha sombra,
na luz que se revela, afaga e acaba,
para morrer no escuro súbito, levando-a ao meu lado.

Uma página da Bíblia para ler um livro

 "O homem é um deus quando sonha e não passa de um mendigo quando pensa" - mais ou menos assim ele diz – Hördelin.

Deus escondeu o seu retrato num lago imensurável,
e fugiu para dentro da floresta,
onde construiu o seu imenso altar,
com bebidas de vinho e massas de hóstia,
fazendo os homens acreditar que era o seu sangue e corpo.

Deus, que também fora gerado no ventre do homem,
e colocado num berço de palha para dormir,
era visto por todos os olhos,
e quem lhe olhava se tornava o seu sonho.

E Deus sonhou que um dia seria colocado na cruz,
e que uma montanha despontaria em declive
no momento em que se apagasse o ocaso.

Por fim, Deus morreu nu,
com pregos nas mãos e nos pés - pelos homens;
e o mundo pôde continuar vestido e limpo.
Os homens puderam saciar-se da fome,
quando a carne já não era fraca,
livrando-se da anemia maligna que viria do céu. 

Elegia

As flores poluíram o jardim
Com cores que eu tentava esconder,
Dolência que sangrava tanto em mim
Nas horas que eu passava a te ver,
Sumindo de um desenho de pincel,
Rasgando as paredes que há no céu,
Fazendo o desamor manchar o quadro.

Não precisa vir agora explicar
Porque achaste o fim a solução
Pra nossa vida enfim ser mais feliz
Que eu não estou a fim de lhe dizer
O que ficou em mim do coração
Que às vezes faz-se ao tempo inverter
Girando com os ponteiros ao contrário.

Vai, que eu te espero em outra estação,
Longe do inverno e do verão,
Onde os jardins são coloridos,
onde o dia não chega a entardecer.
Podendo o amor viver, fazer crescer.
Onde os homens todos são unidos,
Onde os homens juntos dão-se as mãos.

Das ruas

As mulheres da noite já estão dormindo
Sobre os corpos dos homens de outras esposas,
Apenas pelo dinheiro de estranhas nuanças.
Uma forma de ganhar a vida, sim!
Mas também uma forma de distorcer a mulher
Na entrega de si sem nenhum sentimento elevado,
Ou vontade orgânica.
Na mão presa no ar
Um vazio que mendiga por um fúnebre acaso
Despido num lume de fogo.  

Pierrot

Amarga dor,
peço-te, por favor,
que não me tires o meu amor.
Eu talvez seja um Pierrot,
um sonhador,
em confusão.
Talvez não seja não,
mas guardo à mão uma só flor,
amarro as mãos às cordas do violão,
faço canção,
canto o amor à minha Flor,
sinto o perfume,
busco o sabor.
Mas se for dor?
E se for dor?

Ah um Pierrot,
que por amar,
evita o amor,
sonha com a Flor,
e inventa a dor.
Um Pierrot...

HEMORRAGIA DE SENTIMENTOS

Num quarto triste,
sempre com luz fraca ou tenebrosa,
tinha uma cama de solteiro em diagonal.
Na mesinha ao lado da porta,
papéis escritos, incenso e vela de velório.
No lado contrário, uma tela de pinturas
e um guarda-roupa grafite.
Neste imóvel havia fotos penduradas
e recortes de revistas pornográficas.
No pé da cama,
uma estante com livros e um som.
Mas parecia um lugar abandonado...

E naquele cenário,
um garoto era a peça principal.
Era magro, com traços negros e cor branca.
Seus olhos castanhos estavam vermelhos.
Seus cabelos... já não tinha mais cabelos.
Na mão esquerda, um litro de Vodka.
Na outra, uma gilete para se cortar,
e pintar o quadro com o sangue.
Sentado no chão, suava como um porco.

Mas isso lhe fazia bem,
pois, sofrendo pela dor física esquecia dos problemas.
Não obstante, quando acabou o masoquismo,
ele fechou os olhos.
Estava frio, fedendo vômito e encolhido
num canto de parede.
De repente, a luz acendeu – era sua mãe.
E um grito avisou a cidadezinha
que o garoto faleceu.
Hemorragia de sentimentos.