Aqui, um tanto pela admiração que tenho pelos sentimentos do meu amigo - o jovem Richard Wander; como também, por acreditar que era um desejo seu que os dividisse com todos aqueles amantes ao qual, ou em função dos desnorteantes caminhos da vida, ou por serem donos de alguma mácula que não fora desculpado, sofrem dos males causados pelo amor; exponho esta carta que talvez tenha sido seu último suspiro.
No entanto, peço-lhes respeito com o caráter desse desditoso, pois sou conhecedor de sua ternura, que apesar de ter-se deixado a duvidar quando este se mostrava totalmente arrogante no comportamento cotidiano, ainda assim, não a deixou sequer subtrair nessas entrelinhas, onde eu acredito que se mostra sentimental como era no íntimo. E vós, ó leitores sensíveis, que também não encontrou êxito no amor, desejo que amenizes tuas chagas com os sentimentos desse infeliz; ao menos isso.
Fernando Rosa
07 de junho – Fernando, caro amigo, desde que aqui cheguei, em casa de minha tia, a quem devo muita estima, procuro resgatar um sentimento de família que, até então, já não me era cogitado. Agrada-me, principalmente, a alegria das crianças. São mesmo os melhores psicólogos. Tens que ver o diálogo que há entre eu e minha prima de três anos, Ana. Ela parece uma pessoa adulta falando, enfatiza cada palavra, gesticula; assim, fico apenas escutando e, se falo, é no intuito de arrancar-lhe mais informação. O tanto mais que tenho feito, é observar tudo em redor, fazendo análises as quais coloco em paralelo com minha vida, dedicando-me ao árduo exercício do auto-conhecimento mediante mundo que me cerca.
Apego-me, amigo, ao exemplo que me destes quando dizias, em simulação, que o bater das asas de uma borboleta pode provocar uma brisa a refrescar. Por isso, estou descobrindo e organizando significados em tudo o que me é palpável, e o que me toca sensitivamente. Quero aprender a valorizar o que tenho, quer pelo seu destacamento, quer pela sua simplicidade; pois tudo o que é da vida e, simultaneamente, necessário à sobrevivência humana têm significações, e somos nós que damos, conscientemente ou não.
Mas pense em nossa gente, dissimulada, tornando cada vez mais práticos os sentimentos, envolvendo-os em cálculos, significando-os na aritmética de soma e multiplicação (falo do sentimento material, da propriedade), opondo-se a aritmética da divisão? Eis, por exemplo, que estão fazendo do desejo de se ter poder algo mais significativo que o próprio homem, desencadeando o total niilismo da sociedade – isso é preocupante. No entanto, encontro outro valor na aritmética, além da divisão, de cunho comunal, – pois é nesse âmbito que defendo a significação – tal qual é responsável por mostrar o quanto nos subtraímos subtraindo nossos semelhantes. Talvez se diga que é inútil tratarmos desses assuntos que não se faz dependente de nós a resolução, meu amigo. Mas esses são os conselhos daqueles que nos querem dispersos, alienados, acomodados.
De quando em quando, assim que é chegada a noite, visito o jardim da cidade – Jardim do Éden! É que me afino com aquelas árvores formando corpos (como são eróticas!); e se posso te mostrar vestígio, estes estão pendurados nos galhos que se entregam ao vento como braços, lançando abraços. Pareço bobo, não é? Mas quem nunca fantasiou andando pela vida, meu amigo, não conheceu ainda os caminhos do amor. Sim, estou amando! E talvez rias de mim, vendo-me chamar o jardim de Éden. É que foi naquele pedaço mordido de mundo que me esquecia do tempo a conversar com Beatriz. Por outro lado, foi nesse mesmo ambiente que tanto nos agredimos os sentimentos sob o efeito do fruto da, digamos, "má significação" – explico-lhe no próximo parágrafo. Quanto ao "Éden", nem por isso hei de esquecê-lo. Todos os sinais devem ser guardados.
Prossigo - Beatriz preocupava-se demais com os preconceitos de sua família e da sociedade, tornando-os mais importantes que o sentimento existente. "É mau negócio"! – dizia Serpentina, sua mãe. Porém, meu caro, nenhum erro é pessoal; mas, coletivo. Eu e Beatriz também somos responsáveis pelo nosso término. Porém, se eu não estivesse me embrutecido, ela suportaria a pressão a qual estava sujeita. O maior responsável pelo seu afastamento fui eu. Feri-me pelo meu próprio chicote. Ciúme, Fernando! Ela já havia se entregado aos laços do matrimônio no passado. Fora sua mãe, Serpentina, quem "abençoara" o casamento – que ela não me escute a ironia. Afonso é homem de respeito, médico, logo, um bom partido, dizia. Se pudesse resgatar a juventude, acredito que dona Serpentina teria a indolente pretensão de conquistá-lo. Apostaria com você, meu amigo. Algumas mulheres são desses caprichos. Beatriz, não. Casou-se amando o marido. Ela é extremamente sensível, inteligente...não cabe nessa folha. Por tudo o quanto sofro, ainda amo-a intensamente.
Bom, meu caro, posso dizer a respeito de dona Serpentina que, em partes, assemelha-se à personagem criada por Machado, Maria Augusta, mãe de Maria Benedita, no livro "Quincas Borba". É uma triste senhora, hoje, que toma as rédeas da vida de Beatriz, ou por se julgar ameaçada da solidão se a filha resolvesse casar-se, ou porque tinha preconceito com nossa relação; e, assim, fazia tudo o que podia para evitar o "desastre". Mas Beatriz já chegou aos quarenta, sabe o quer nessa vida; porém, nada questiona, é ela quem permite tal invasão. Se a velha soubesse que a filha nunca há de abandonar-lhe... Mas o medo cega-nos. Minha maior chateação, no entanto, é que esta senhora nunca me olhou diretamente nos olhos, sempre começava pelos pés. Está aí a parte que lhe faltava dizer: é burguesa; francesamente.
Já é madrugada, Fernando; o sereno cose os meus ossos. Amanhã continuo.
08 de junho – "Triste é o amanhecer: nasce o sou da ressurreição com um porvir funeral". Amigo, o dia apareceu-me em lágrimas. Amo Beatriz , Fernando! Ontem foi seu aniversário; e por não estar ao seu lado, doeu-me a alma. Saiu para festejar com a família e amigos num restaurante. Estava linda, como sempre. Ainda tenho guardado na memória o vermelho que lhe vestia, e foi inevitável a lembrança do Natal que passamos juntos. Usava vermelho também (paixão). Dona Serpentina ocupava o acento de fronte a praça. Ao seu lado esquerdo, um amigo de Beatriz que muito me agrada. Este vive a sombra do seu ideal de liberdade, sem se preocupar com maledicências – assim como tu. Do outro, sua filha – esta me expulsava com o olhar, queria ver-me longe dos olhos de sua mãe.
Sentei-me longe. Num banco de praça que ficava de fronte o local da comemoração. Distrai-me com os olhos para onde estava Beatriz. Ah! Por que duas pessoas que se amam, afastam-se para serem felizes? Será mesmo matando que se permanece vivo? Não acredito nisso, Fernando. Estou sofrendo, agora. Mas sou culpado. Ainda no dia 06, cujo momento estava a escutar Soneto de Separação, interpretado por Vinícius e Elis, jurei que não sairia de casa para evitar qualquer constrangimento dessa força. Mas fui impelido por um desejo irresistível que sequer posso explicar. Queria vê-la ao longe, só isso. Será pecado, meu amigo, ir ao encontro de quem se ama? Penso que mais errantes são aquelas pessoas que fogem ao amor por medo de sofrerem. Insensatos!
Depois, Beatriz levantou-se, fora embora com sua família, despediu-se dos amigos antes. Virou-se de costas e não mais olhou para trás. Se olhasse, eu estava escorado num poste, acompanhando-lhe os passos, com os olhos em lágrimas. Algumas pessoas que ali se encontravam, usaram de um sorriso prosaico diante de minha tristeza. Tenho que aprender a chorar para dentro, Fernando. A insensibilidade em nosso meio é tamanha, que pessoas (medíocres) tratam com escárnio os sentimentos alheios. Não posso mais dar a face para que as línguas da cidade cheguem ao gozo, sadicamente. Ninguém se preocupa em ajudar, somente em escarnar.
Não obstante, ainda que não tenha tua confirmação, acredito que esses problemas sociais são provenientes da política partidária, e do capitalismo. O que se percebe é a mercantilização de todas as dimensões da vida. Por isso, meu caro, é preciso que as pessoas analisem os significados que dão as "coisas", ou serão estas "coisas" que lhes darão qualquer significado... de posse. Agradeço, muito, a chegada do dia 20 de Maio: fim das eleições - viva! Poxa, a festa ornamentada com camisas e bandeiras e papéis de divulgação foi mero esconderijo da subversão do povo contra o próprio povo, que se dividiu entre lados (como sempre) em função dos interesses individuais, a divergir do progresso comunal. Este é o espírito partidário!, que, ao iniciar-se com as oposições, reflete-se em toda a sociedade; desde o ódio nos olhos ao lume das facas – foi a política mais baixo nível dos últimos anos, Fernando. As Epsilon Crucis apropriaram-se dos valores e das atenções com acenos e sorrisos. Quem ganhou!? Todos perderam... "A propriedade é um roubo"; dizia Proudhon, anarquista. Pense nisso, amigo.
Fico feliz por saber que Beatriz não defende partidos. Dona Serpentina é diferente. Aproveitou os desentendimentos meus com sua filha para nos afastar. Preconceito! Infelizmente, não posso acreditar que foi por outro motivo. Veja. Beatriz trabalha como instrutora de Belas Artes. Foi em um desses cursos que lhe conheci. Era seu aluno. Desde o início, começamos a perceber coisas um no outro. Mas, como sabes, não passo dos vinte. Começamos a namorar. Visitei sua casa. Serpentina, acreditando que eu tinha uns 25 anos, ficara assustada. Fui embora. Mais tarde, encontrei-me com Beatriz. Ela disse que sua mãe perguntou minha idade: 17 anos. E foi Beatriz mesmo quem me falou que Serpentina quase caiu para trás. Preconceito, Fernando!
Fui conversar com a velha:
- Não concordo com esse relacionamento.
E mais bravamente.
- Beatriz só pode ter perdido o juízo!
- Mas que erro há em gostar de alguém?
- Você é um menino. O que tens para oferecer a ela?
- Meu amor.
- Amor não é suficiente. Sonhei em ver minha filha casada com um homem de respeito. Alguém que tem uma vida instável: trabalho, influências...
Não tive mais como argumentar, diante de tantos disparates. Senti-me tão pequeno quanto um grão de areia no mar, mesmo sabendo que aquilo tudo provinha de alguém que não merece meu respeito. "Por que as pessoas valorizam os serem a partir da superficialidade a que chamam de integridade?" Fiquei pensando, pensando... Nada a fazer para mudar alguém que já estabeleceu uma linha de raciocínio, principalmente quando se trata de valores materialistas. Só o tempo para curar essa doença.
Fernando, meu caro, acaso sabes por que nossa sociedade insiste em criar relações entre amor e política? São coisas que devem ser tratadas separadamente, penso eu cá. Se amor tivesse que ter primeiro dote, data de validade, número de compra, controle das idades; e nisso, também, está incluso o sexo (opostos), religião, naturalidade... ?Nessas condições, amor só não teria AMOR. "O preconceito inibe a evolução", disse algum pensador que me falha o nome agora. Mas existe uma verdade. Afonso é médico; sou mero estudante. Isso me dói à alma. Há, no entanto, quem diga que ele traiu Beatriz quando eram casados. (Lógico!, deves estar a dizer. Não seria traição se estivessem separados.) Porém, no tempo que estivemos juntos, um ano, fui fiel. Acredite. Brigávamos! Mas essas coisas acontecem em todo e qualquer relacionamento; e, no diálogo, pode-se resolver. Uma coisa é certa, meu caro: o erro é coletivo. Ação e reação. Mas deveríamos usar de reação com inteligência; ou melhor, ação. Parar com esse jogo de acusações. Deveríamos brincar com os pratos da balança, malabaristicamente; pois pesam-se, nela, os velhos e sujos trinta dinheiros. "Vós sois deuses" - foi lançado o desafio.
Esta carta parece um livro, mas amanhã termino.
09 de junho – Acordei esta manhã com um único pensamento: a virtude está no meio. Preciso acreditar nisso, Fernando. Estou fraco, derrotado. Parece que longe de Beatriz não há virtude. O amor é a maior virtude! Não posso faltar com este ar que respiro. Mas as pessoas sempre escolhem por esquecer; é mais curto este caminho. Esquecer! Caminho repleto de flores murchas! E era Beatriz mesma quem me dizia, rapaz: "Viver o amor, fazer crescer". Agora tudo mudou. Portanto, preciso te dizer, vou embora. Perderei a única mulher que me levou ao prado do amor para respirar do seu perfume. Vou embora, Fernando! E não hei de voltar. Acabou, amigo. Sentirei muitas saudades daqui. Família! Acostumei-me a viver em família...
Estou sofrendo. Choro pelos cantos, escondido, para não preocupar ninguém. Todos sabem das minhas loucuras, e podem pensar que voltarei a fazê-las. Meus braços; tenho vergonha deles. Sabes o porquê, não sabes? Quero entregar-me ao Deus dará. Acaso existe, amigo? O sol apareceu na janela esta manhã; não posso me esquecer desse fato. - Adeus, Beatriz!; receberás uma última prova do meu amor. Devo, Fernando? Vê se te agrada:
História de uma Flor
No auto de uma montanha,
longe dos hirtos eclipses que Diana lume,
próximo a um novo céu prateado de estrelas,
uma flor nasceu; a fincar suas raízes na terra
para reanimar (com seu perfume) o vento
que, denso e frio, caía dobre duas almas;
duas almas sensíveis a caminhar no tempo
com um cruzeiro nas costas marcadas de guerra.
Viera, ela, trazendo o amor em suas pétalas;
mas, com um mal-me-quer bem-me-quer duvidoso,
onde só os dois amantes podiam decidir qual delas
- a pétala -tornar-se-ia eterna,
com um porvir alegre ou desditoso.
Eles fizeram do infinito, um risco - um para o outro.
Sim! Fizeram mesmo do infinito, tenebroso.
Enquanto, de nascente,
a vida queria ser materna,
abriram uma cratera na terra;
fizeram do amor, poente.
E, de tão exigentes, na guerra,
deixaram-se perder na quimera
com o perfume da flor - para sempre.
Espero que gostes, Fernando. Afinal, veio do coração.
Utilize os meus conselhos; por mim. Em minha vida, essas palavras perdem-se com o sentido à fragilidade. Vou embora! Adeus, amigo. Beatriz! Como sinto saudades, meu Deus. Adeus, Fernando. (Um carneirinho, dois carneirinhos, três carneirinhos...)
Ah! É responsabilidade tua, Fernando, o sigilo dessa carta; tudo o que nela falo fica entre nós, restrito.
Adeus, amigo.
Richard Wander
Cai o pano.
(Inspirado no livro "Os sofrimentos de Werther")